domingo, 28 de dezembro de 2014

Bolo integral de maçã ou como domar os humores do corpo

Foto Tatiana Cruz

Os meus cadernos de receita são uma espécie de oração. Fazia tempo que não recorria a eles. Fácil de entender. Comecei 2014 totalmente absorvida por um silêncio interior tão gigante, que as folhas com escritos quase indecifráveis eram um bálsamo. Isso porque, ao contrário do que possa parecer, o silêncio fala. É uma matraca inconveniente. Gigante. Coloca todo mundo em frente ao espelho.
Assim fui atravessando meses, observando estações, vendo a árvore de nozes mudar de cor, sempre com um olho na cozinha, no forno, sempre com as mãos ocupadas.
Mas no findar do ano, na despedida, como era de esperar, o silêncio explodiu. A voz tomou conta de tudo. Num tempo que era dela. E assim o verão chegou: o asfalto quente, a noite estrelada, uma eletricidade no ar. E a cozinha ficou de lado. Quietinha. Parada. Quem falava era eu. Quem ocupava os espaços - todos - era eu. Novamente.
Acho que estou falando tudo isso porque quero dizer que fizemos as pazes - eu e a cozinha. Numa acomodação interna bonita de se ver, cada uma com seu cada qual, voltamos a nos entender. E os humores do corpo, esses, os femininos, que se eletrizam com o início do ciclo menstrual, me fizeram sacar dos cadernos uma receita sofisticada, deliciosa e calmante. Sem chocolate e açúcar refinado, o bolo integral de maçã doma a montanha-russa interior com ingredientes saudáveis e deliciosos, que conduzem a um nirvana sem tempestades posteriores.
É um bolo tão fácil de fazer, tão fácil, que quase não tem graça. Além das maçãs picadas, leva nozes, goji berries e passas de uva, na minha livre adaptação, é claro. É uma massa densa, consistente, que demanda aquele braço de nonna na mistura. E, quando vai para a forma e é salpicada com açúcar mascavo e canela, chega a comover pela beleza, candura e carinho com a gente.
Eu fiz aqui, tá cheirando na cozinha, o caderno de receita tem canela. E a vida pode ser mansa. De um jeito bom.

Bolo Integral de Maçã

Ingredientes:
- 2 maçãs inteiras e com casca
- 2 ovos
- 2 xícaras de açúcar mascavo
- 3/4 de xícara de óleo
- 2 xícaras de farinha integral
- 1 xícara de aveia em flocos
- 1 colher de sopa de fermento químico em pó
- 1 colher de sopa de canela em pó
- 1 colher de chá de noz-moscada moída na hora
- nozes picadas
- goji berries
- passas de uva

Modo de fazer:
- Descasque as maçãs e reserve as cascas.
- Pique as frutas em pedaços pequenininhos e reserve
- Bata no liquidificador o óleo, os ovos e as cascas de maçã
- Em uma tigela, misture a farinha integral com a aveia e o fermento e junte depois a mistura do liquidificador
- Acrescente então as maçãs, a canela, a noz-moscada, as passas, as nozes e as goji berries.
- Misture tudo
- Coloque numa forma untada e enfarinhada e salpique por cima com açúcar mascavo.
- Lever ao forno por mais ou menos 30 minutos.

Se for época de TPM, o legal é sacar um chá da gaveta, porque o café é outro agitador dos humores. Mas, se for como eu, um pouco teimosa, passe o café com sementes de cardamomo e tenha um antídoto pro pior.
Fui!

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Chaleira chiando é um lar

T. Dylan Moore / Searching Through Vapors For Substance


Chaleira chiando é um lar.
Fui descobrir isso quando me peguei morando sozinha em Porto Alegre, longe da minha mãe e da sua cozinha.
Às vezes, eu esquentava água pra que o chiado me alcançasse de novo. E preenchesse a minha casa.
No inverno era pior. Porque tinha o vento. E a solidão se agigantava. E a gente olhava pela janela: as pessoas dobradas pra dentro, uma aura cinza na paisagem, uma imensidão que se abria em direção ao peito.
E daí, nesses dias, eu me perguntava por que tantos sonhos grandiosos, tantas horas apressadas. Eu só queria que o interfone tocasse de surpresa, como na casa materna, onde sempre tinha café passado na hora para acalentar alguém que aparecesse para jogar conversa fora.
Eu vivia sozinha, colocava a chaleira pra chiar, sozinha, enchia as horas de tarefas, sozinha, mas, no fundo, o sonho que eu sonhava era um sonho menor. Talvez porque um dia eu vivi numa casa onde apareciam pessoas sem hora marcada para tomar café e jogar conversa fora, eu intuía que tudo voltaria.
E voltou.
O sonho menor.

Tudo isso pra dizer que fritar bolinho de chuva é um ato de extrema generosidade que precisa - e deve - ser mantido por gerações, ok? Porque pode aparecer visita sem hora marcada, e com poucos ingredientes da despensa - e um café passado na hora, é claro -, a casa materna se abrirá de novo, como um tempo firme, um sol. E, assim, sempre vai haver esperança de afeto, abrigo, mesmo que os dias não sejam bons.

Bolinho de Chuva

Ingredientes
- 2 xícaras de farinha de trigo
- 1 pitada de sal
- 1 colher de chá de fermento químico seco
- 1/2 xícara de leite
- 1 ovo
- 1/2 xícara de açúcar
- óleo para fritar
- açúcar e canela para polvilhar

Modo de preparo
Misture todos os ingredientes. Não tem mistério nenhum. Depois aqueça o óleo. Aí é que se inicia uma saga que vai testar a tua paciência. Vou te dar a real, são grandes as chances de tu fritar o bolinho por fora e por dentro ele ficar cru. É horrível. Então, com o tempo, fui aprimorando minha técnica, que consiste em usar a chama mais baixa e, mesmo assim, ir tirando a frigideira do fogo para fitar um pouco fora. Eu coloco pra fritar ainda no fogão, quando o bolinho sobe e fica dourado de um lado, eu viro e tiro do fogão. Deixo fritar um pouco e, assim que fica dourado, coloco de volta pra fritar do outro lado mais um pouco. Vou sentindo... Siiiiiiiiim, é demorado, quase uma tortura, eu sei, mas foi a única maneira que encontrei de fritá-lo perfeitamente. O processo todo demora uma meia-hora. Mas meia-hora não é nada quando se tem uma boa companhia pra jogar conversa fora. Afinal, pra que tanta pressa?

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Cinema Transcendental ou a trilha ideal para um bom brownie

Crédito da foto: Tatiana Cruz

Não sei o que alegra primeiro: se o cacau inundando as veias, como uma represa que rompe depois de dias preparando-se para o alarme, ou se é a música boa, iniciada como uma afronta à rotina de trabalho e escravidão.
Não importa.

O que conta, minha gente, é que Cinema Transcendental é, por ora, o melhor álbum do Caetano. É uma levitação! Uma trilha sonora ideal para o preparo dessa receita, faceira, dançarina, irritantemente feliz.

Vamo que vamo!!!

"Lua de São Jorge
Lua deslumbrante
Azul verdejante
Cauda de pavão
Lua de São Jorge
Cheia branca inteira
Oh, minha bandeira
Solta na amplidão"

"E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo
Não serei nem terás sido
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo"

"No meu corpo sangue não corre não
Corre fogo e lava de vulcão"

"Deixa que minha mão errante adentre
Atrás, na frente, em cima, embaixo, entre
Minha América, minha terra à vista
Reino de paz , se um homem só a conquista
Minha mina preciosa, meu império
Feliz de quem penetre o teu mistério"

"Cana doce, Santo Amaro
Gosto muito raro
Trago em mim por ti
E uma estrela sempre a luzir"

"Tudo que ressalta quer me ver chorar
Louco por você
Nada esquece de armar uma lágrima
Que às vezes vem bater
Na cara"

"Existirmos - a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina"

"Onde estou
Não importa tanto aonde vou
O melhor é ter amor"

"Todos sabem voar"

Ingredientes:
- 1/2 xícara de manteiga sem sal em pedaços
- 100 gramas de chocolate meio amargo
- 2 ovos
- 1 xícara de açúcar mascavo
- 2 colheres de chá de extrato de baunilha
- 1/2 xícara de farinha de trigo integral
- 1/4 de xícara de cacau em pó sem açúcar
- 1/3 de xícara de nozes-pecã picadas

Preparo:
- Preaqueça o fogo a 200 graus e unte uma forma quadrada rasa de 18cm.
- Derreta a manteiga e o chocolate em banho-maria. Reserve e deixe esfriar.
- Coloque os ovos, o açúcar mascavo e a baunilha numa tigela e bata bem até que massa fique espumosa. Adicione a mistura do chocolate e da manteiga derretidos até formar uma massa uniforme.
- Acrescente a farinha e o cacau e espalhe as nozes.
- Coloque na assadeira e deixe no forno por cerca de 18-20 minutos.
- O lance é ficar uma casquinha dura por fora e úmido por dentro.

Enquanto a coisa toda se apronta, aumenta o volume. Aguardar pode ser bom.

terça-feira, 1 de abril de 2014

O primeiro dia de quem acorda sem dor ou Um Bolo de Chocolate Voluntarioso

Crédito da foto: Tatiana Cruz
                                                                 

Quando a gente perde a saúde, levada por uma dessas viroses prosaicas, cotidianas, e cai de cama, precisando precisar do mundo, parece que um outro mundo fica todo subterrâneo em nós.
É como se a cabeça fosse uma enorme panela de pressão.
As ideias indo e vindo. As imagens correndo. As palavras minguando - pra dentro.
Tudo pra dentro.
Seguraram nossos braços e nossas ordens e até nossas aflições. Não nos deixam arrumar o mundo - mesmo que o mundo seja apenas a nossa casa. A gente sua, chia, dorme um sono cheio de vigília, redondo, úmido, barulhento. E o que nos resta é aceitar. E precisar. E depender. Faz parte.

Foram quatro dias assim, alijada dos afazeres miúdos dos meus outros tantos dias. E no retorno, ao abrir os olhos, esticar as pernas, espiar a luz, foram os bolinhos de chocolate da revista que me sinalizaram a cura. Eles, que tentavam a todo custo me flertar nas minhas insistentes e constrangedoras idas ao banheiro, agora não eram mais recebidos com náusea.

Assim começou o meu primeiro dia de retorno aos meus dias de afazeres miúdos. Começou com receita nova, cheia de vontades e de sabor - como são os dias de quem acorda sem dor.

Divido aqui com vocês. Vale fazer. Porque preenche um mundo de coisas dentro da gente. Porque é doce. É voluntarioso. É bom...


Bolinhos Macios
(16 unidades)

Ingredientes:
- 1 pote de iogurte natural de 170g
- 3 potes de farinha de trigo (o pote aqui é o mesmo do iogurte)
- 2 potes de açúcar
- 1 pote de óleo de girassol
- 100g de chocolate meio-amargo derretido com 20g de manteiga
- 2 ovos
- 1 colher de chá bem cheia de fermento químico em pó

Modo de preparo:
- Misture os ingredientes líquidos, depois adicione os sólidos, mexa delicadamente e encha as forminhas de cupcake. Trinta minutos de forno ou um pouco mais são suficientes pra se entrar em alfa.

Simples não?






domingo, 26 de janeiro de 2014

Tarte Tatin ou um tributo ao excesso

Crédito da foto: Tatiana Cruz
                                                  

Tudo começa despretensiosamente. Como as melhores coisas, a meu ver.
A massa folhada, ensacada, fria, sem cor, asséptica, não diz a que vem, e as maçãs, bom, as maçãs são aquelas que se encontra em qualquer fruteira de qualquer casa. Uma maçã qualquer.
Porém, aos poucos, o clima muda.
Na panela, o açúcar ferve e depois toma conta das forminhas de tarteletes, onde, em seguida, deitarão as maçãs, delicadamente posicionadas, num desenho circular.
Tudo termina no calor de 180 graus.
É tudo tão fácil. Tão básico. E tão bom.
Uma sobremesa que se degusta lambuzando as mãos.
Um bom marco pra vida. Um bom antes e depois.
Testa aí!

Tarte Tatin

Ingredientes
- 3/4 de xícara de açúcar
- 4 maçãs fuji
- suco de limão
- manteiga
- massa folhada pronta

Modo de fazer
- Descasque as maçãs, tire as sementes, corte-as em meia-lua. Deixe-as repousando no suco de limão para não escurecer.
- Numa panela, derreta o açúcar até o ponto de caramelo e despeje a mistura no fundo das forminhas de tarteletes.
- Rapidamente, antes que o caramelo endureça, cubra com as fatias da maçã, criando um desenho circular e depois coloque meia colher de chá de manteiga.
- Cubra com a massa folhada, encaixando-a e dobrando o excesso para o lado de fora.
- Faça furinhos e polvilhe com açúcar, canela e noz-moscada.
- Asse no forno baixo por sei lá quantos minutos. Mais uma vez não cuidei, mas vai dourar a massa e perfumar a cozinha e a coisa vai ficar linda.
- Desenforme enquanto estiver quente de modo que as maçãs carameladas fiquem aparentes e a massa escondida.

Essa receita pode ser feita numa frigideira antiaderente, daquelas que vão direto para o forno (meu sonho de consumo). Como não tenho, fiz em pequenas dimensões.

Gente, é pra se jogar.
Bon appétit!